Minha mãe fez o melhor que pôde para instilar o evangelho em seus filhos. Era fácil saber onde os McCaulleys estavam quase todos os domingos: compactamente enfileirados no banco habitual na Igreja Batista Primitiva Union Hill, em Huntsville, Alabama, das dez da manhã até o Espírito terminar sua obra. Sempre havia a possibilidade, contudo, de minha mãe estar cansada demais depois do trabalho na montadora Chrysler para arrastar quatro filhos insubordinados até a casa do Senhor. Para incentivar esse cansaço a realizar sua obra, ficávamos em absoluto silêncio, cada um em seu quarto, na esperança de que ela não acordasse. O sinal de que nosso plano havia falhado era o som de Mahalia Jackson no rádio. Quando Mahalia começava a cantar “Amazing Grace”, sabíamos que nossa pequena conspiração tinha ido ralo abaixo.
Nossa casa vivia envolta em música gospel. Além de Mahalia, não faltavam canções de Shirley Caesar dizendo para alguém impedi-la de fazer uma bobagem ou de James Cleveland lembrando-nos de que ele nunca se cansava. Não obstante nossa rebeldia contra as melodias gospel, elas enchiam nosso lar e formaram nossa imaginação.
A segunda testemunha constante das esperanças e dos sonhos dos quatro filhos era a enorme Bíblia King James que morava em uma prateleira na sala de estar. Sua função era mais de talismã que de livro para leitura. Sempre que minha mãe queria extrair de nós uma confissão, fazia-nos colocar a mão sobre essa Bíblia e declarar que tínhamos dito a verdade. Só o mais descarado pecador contaria uma mentira na presença de mamãe, de Jesus e do rei James. Também assistíamos a desenhos animados cristãos (Superbook), frequentávamos os estudos bíblicos durante a semana e todas as Escolas Bíblicas de Férias possíveis e imagináveis. Para onde nos voltávamos, víamos as Escrituras.
Ao mesmo tempo, contudo, eu era filho do ambiente em que vivia. Era um menino negro sulista, do estado de Alabama, que amava hip-hop. Assim que minha mãe fazia uma pausa nas canções da Mahalia, eu ligava meu som. OutKast, Goodie Mob e os baixos de Miami trovejavam no Oldsmobile Delta 1988 que eu dirigia para a escola e para festas na região noroeste de Huntsville. O hip-hop também me ajudava a interpretar o mundo que parecia ter o pé firmemente plantado no pescoço dos habitantes de pele escura de minha cidade.
Em resumo, eu conhecia o Senhor e a cultura. Ambos travavam uma batalha infindável por minhas afeições. Eu amava hip-hop porque havia momentos em que os cantores pareciam verdadeiramente compreender como era vivenciar a mistura inebriante de perigo, drama e tentação que caracterizava a vida dos negros no sul. Falavam de drogas, violência, interações com a polícia, e até de Deus. Seu principal objetivo não era oferecer soluções, mas refletir sobre a realidade que lhes havia sido imposta. E, no entanto, eu também amava as canções gospel de minha mãe, pois me enchiam de esperança e me ligavam a algo antigo e imutável. Enquanto o hip-hop tinha uma tendência niilista e uma ética utilitarista (é assim que as coisas são, e temos de fazer o que é necessário para sobreviver), as músicas de mamãe, arraigadas em textos e ideias da Bíblia, ofereciam um vislumbre de algo maior, mais amplo. A luta à qual me refiro não era entre gêneros musicais. Era uma luta entre niilismo negro e esperança negra. Refiro-me às maneiras pelas quais a tradição cristã luta pela esperança e cria espaço para ela em um mundo que nos atrai para o desespero. Proponho que um elemento fundamental dessa luta por esperança em nossa comunidade é a prática da leitura e da interpretação bíblica provenientes da igreja negra, o que chamo interpretação eclesiástica negra.